À Soraia Falcão, amiga felina
Na
noite anterior, eu deveria ter ido para o Cabaré Soçaite com minha fantasia
natalina. Os amigos me abandonaram e as amigas estavam algemadas aos namorados.
Fui dormir chateada por perder a festa do DJ RKabaré. Acordei sem disposição, enrolei
na cama por longo tempo, tomei um mini-banho (como diz Tallyta Paula), sai em
jejum e a pé. Já estava bem longe do ap quando percebi que havia deixado o
convite na outra bolsa. A única amiga que conhecia o endereço procurado não
atendia ao celular. Tomei um táxi para não perder tempo tentando me localizar
na capital.
No
casarão restaurado fui recebida por um porteiro sorridente que não conhecia a
pessoa que eu estava procurando. Como o espaço era aberto ao público,
aproveitei para bisbilhotar nos cômodos imensos. Sempre fui apaixonada por
antiguidades, senti-me estimulada a perscrutar cada detalhe daquele lugar.
Fui
interpelada pelo caseiro setuagenário que também não sabia nada sobre o convite
que eu havia recebido. Minha excursão fascinante foi interrompida por seu falar
arrastado e sua conversa cansativa. Ele me contou sobre a família proprietária
do imóvel, citou algumas datas e nomes (visivelmente decorados para
impressionar os visitantes), narrou alguns causos e me reteve assim por quase
uma hora – em pé, na sombra de uma mangueira que lançava mísseis maduros em
intervalos curtos. Fiquei observando calmamente o tipo indecifrável e
verborrágico. O ser humano, principalmente o sem-noção, instiga minha
curiosidade.
Lá
pelas 10h, chegaram alguns octogenários requintados e falantes. Aos poucos o
lugar foi se povoando por grupinhos de cinco ou seis pessoas em diferentes
pontos. Ensurdeci para o meu interlocutor, absorta no movimento ao nosso redor.
Percebendo meu interesse, o caseiro começou a apresentá-los à distância. Fiquei
me imaginando na idade deles, novamente minha mente se distanciou da voz de Seu
Ferreira.
Quando
aquela chateação já me fazia bocejar, um senhor de suspensório veio me resgatar
daquele papo enfadonho e me convidar para ouvir poesias. Em segundos
descobrimos que a pessoa que me convidara frequentava aquele grupo, mas ainda
não havia chegado.
Fui
levada a um auditório minúsculo, ocupado por senhores carecas e senhoras de
cabeleiras loiras – visivelmente pintadas. Fiquei observando a mobília antiga e
tentando adivinhar as histórias que poderiam me contar se falassem. Foram poucos
minutos de viagem no tempo até minha presença ser percebida. Expliquei-lhes que
era professora de Literatura, morava em Juazeiro do Norte, havia sido convidada
para o aniversário e aproveitei para distribuir os convites do evento gratuito
que realizaria naquela noite. Imediatamente me colocaram no alvo – logo eu que
odeio entrevistas! Passei a explicar tudo sobre minha cidade: belezas naturais,
número de habitantes, desenvolvimento urbano, questões político-partidárias,
blá-blá-blá-blá. Ao esgotarem as questões municipais, tive que responder sobre
as escolas, o salário dos professores, o comportamento dos alunos, a rotina nas
salas de aula, etc-etc-etc-etc. Sábio foi o Quintana ao rotular o perguntativo
o pior de todos os chatos.
Desejei
ter nascido muda, surda ou qualquer coisa que equivalha, quando surgiram
indagações sobre a obra de poetas cearenses que eu mal conhecia de nome. Percebi
que bancar a entendida só multiplicaria as perguntas, comecei a lançar um
muxoxo para cada nome proposto. O senhor que conheceu minha cidade em sua
juventude antipatizou minhas reações e passou a me tratar com desdém. Um jovem (aparentando
algum distúrbio psíquico) sugeriu que cada um lesse um poema da própria autoria
para que eu analisasse. Diante do apoio veemente do grupo não tive como recuar,
embora tenha desejado sair correndo. Um poema, um comentário vago; outro poema,
outro comentário forjado; mais um poema, mais um comentário escuso...
Pelos
meus cálculos a tortura se estenderia pelas próximas horas, mas fomos
interrompidos pela aniversariante que chegou-chegando, vestida como uma
debutante e carregada de presentes lacrados (onde ela havia recebido tantos?).
A mulher parecia uma caricatura daquela que fizera interferências sensacionais
nas minhas aulas – aluno é sempre surpreendente! Eufórica se desculpou pelo
atraso, me apresentou como sua mestra e fez um discurso elogioso sobre o curso
que eu havia ministrado naquela semana. Não evaporei de constrangimento porque
tinha esperança de um tsunami destruir a cidade ou simplesmente um tufão derrubar o teto em nossas cabeças.
–
Izabela? Izabela!
Não,
não era a minha mãe me acordando para dizer que ficar lendo até de madrugada causa
pesadelos.
–
Amiga felina!!!
Peguei
minha bolsa e pulei no meio do corredor. Sussurrei disfarçadamente, enquanto
fingia que arrumava algo no vestido:
–
Leia os meus raivosos lábios rosados: ci-la-da, pe-ri-go! Vamos cair fora, já!
A
aniversariante foi nos buscar para apresentar Soraia no auditório. Longo
discurso, uma verdadeira ode, mais aplausos.
–
Amiga Cat, que lugar é esse, pelo amor de Deus? – Soraia cochichava.
–
É um manicômio para artistas e se não fugirmos logo vamos ficar por aqui mesmo...
– eu respondia silabando as palavras.
Terminada
a primeira sessão aquém-tapete-vermelho-sem-paparazzo, a aniversariante nos
levou para visitar os outros grupos. Novos discursos, aplausos-aplausos, mais perguntas
nonsenses e a distribuição dos convites do nosso evento (o preço que se paga
para viver da própria arte). Depois de atrapalharmos a reunião dos cordelistas,
dos radialistas e dos enxadristas por insistência da aniversariante, o que
ainda me mantinha respirando era a ilusão de estar bem perto da morte e já ter
purgado meus pecados um por um.
–
Amiga Cat, não podemos demorar. Eu só passei aqui para avisar o ocorrido... –
era o plano improvisado, mas com alguma verdade.
–
Felina, se não encontramos o véu da moça fantasma no ateliê da Amélia... A
gente procura uma loja aberta, onde possa ser comprado um.
–
Mas se não formos agora resolver isso, não dará tempo ensaiar. A Amélia não
mora mais naquele apartamento que era aqui perto.
Não
havíamos combinado nada, mas toda a conversa se encaixava de forma verossímil –
como os adolescentes fazem quando precisam enganar os pais. Uma professora de
Literatura e uma atriz deixaram a feliz aniversariante preocupadíssima.
–
Mas eu não posso deixar vocês irem embora sem se servirem. Onde já se viu
tamanha grosseria? Vocês são as
convidadas de honra, meninas!
Fomos
interrompidas pelo caseiro com o recado dos poetas que nos esperavam no
auditório. Com alguns minutos da técnica teatral de Soraia e da minha cara de
pôquer conseguimos nos despedir da sexagenária de saia balonê que seguiu para
seu momento democrático.
–
Só vou deixá-las porque sou uma das candidatas à diretoria e não posso estar
ausente da votação.
Fomos
levadas ao banquete dionisíaco, onde o álcool era dispensado visto que todos
ali viviam embriagados por osmose artística. Expliquei para Soraia que nosso
almoço seria aquele mesmo para termos tempo para as compras. Nem estávamos com
fome, mas nos vingamos das aporrinhações nos salgados e no refrigerante.
Quando
disse ao caseiro que iamos embora – para nunca mais voltar porque Deus é fiel!
– ele lamentou pelo pouco (sei, pouco...) tempo que tivemos para conhecer as
atividades. Entregou-me umas folhas mal xerocadas com a história insípida que
havia me contado e explicou que eu precisava pagar cinco reais pelo material. Fiquei
estarrecida, mas não relutei em abrir a bolsa. Ao notar que a menor cédula que
eu possuía era de dez reais imaginei que pagaria o dobro se não houvesse troco.
Recorri a Felina:
–
Felina, me empresta cinco que pagarei feliz para ir embora daqui agora.
Sorridente
Seu Ferreira recebeu a cédula que Soraia estendeu, enfatizando que poderíamos
voltar sempre que quiséssemos (sem comentários, por favor). Quando fi-nal-men-te
eu dava as costas para aquele universo dramático, já me sentia uma fênix de
volta ao caos das ruas, ouvi a proposta apavorante:
–
Esperem aqui que tenho uma surpresa para vocês. Não se mexam, não saiam daqui!
–
Felina, essa é a chance de fugir daqui, é agora ou nunca!
–
Ah, Izabela, sair assim também não, né? O coitado foi tão atencioso com a
gente!
–
O coitado nos extorquiu cinco reais, isso não merece congratulações. Vamos
vazar agora!
–
Ah, não, Izabela... Eu não vou fazer isso com o bichinho.
–
Mas você não estava aqui cedo comigo para aguentar o bi-chi-nho imitando Roberto
Carlos...
–
Ele não disse que tem uma surpresa? E se for um presente?
–
Só se for de grego. Ou de troiano. Talvez seja um minotauro faminto...!
–
Izabela, para com isso! A gente vai embora daqui a pouco! Relaxa, sua alarmista!
–
Como é, Soraia? O cara toma conta de um museu vivo, se diz parente de Lampião, quer
nos fazer uma surpresa e eu que sou alarmista? Ele vai é nos colocar para
correr com tiro de bacamarte!
O
sexagenário voltou serelepe, parecia muito mais jovem, estendeu para Soraia um
livro úmido com umas setecentas páginas amareladas. Gata de sebos reconheci que
era obra rara, esgotada.
–
Para mim, seu Ferreira? – Soraia sorriu emocionada.
–
Eu não disse que tinha uma surpresa? É uma lembrança da biblioteca daqui para
você!
Não
é que o velho se encantou com a Soraia... O coroa furtou um livro do acervo do
casarão para impressioná-la. Isso é o fim do mundo, D. Orestina!
–
Oh, seu Ferreira, o senhor é muito gentil, viu?
Depois
de Soraia ter rejuvenescido o caseiro, ganhamos as ruas com aquele depósito de
ácaros nas mãos. Minha amiga felicíssima com o presente e eu com um misto de
sensações: de frustração a síndrome do pânico, de dormência a estado de choque.
–
Amiga Cat, tu tá pronta pra surtar? Tu vai desmaiar quando ver essa loja indiana...
–
Eu já estou no meio de um surto. Um surto coletivo suponho! Não desmaio com
mais nada.
–
Aquela mulher era tão equilibrada no curso, parecia tão inteligente... Parece
que agora ela queria provar a superioridade da família, sei lá. E ela nos
convidando para irmos um dia à fazenda deles, Izabela? Dizendo que é coisa de
cinema!
–
Cinema de Faroeste, só se for. Ela é louca! Ela não, eles todos! Ali só tem
gente pancada das ideias. Aqueles poetas se acham os imortais... Não passam dos
imorríveis! Deus me livre!
–
E o caseiro é o menestrel! Nem acredito que o velho me deu esse livro!
–
E eu não acredito que dei cinco reais por duas folhas xerocadas.
–
Amiga Cat, tu vai esquecer tudo na loja de vestidos indianos.
–
Eu vou esquecer tudo quando eu escrever sobre essa manhã bizarra. Já tenho até
o título...
| 2010 |
Eu nunca mais tinha gargalhado tanto com esse relato...meu Deus!!!!
ResponderExcluirIzabela parabéns pela narrativa tão descritiva e rica de detalhes...memória fotografica viu?
Você como sempre...M A R A V I L H O S A !
E quanto ao livro, está enfeitando a minha estante que ficou mais rica de cultura, e acaros...xerin