PANAPLÉIA

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Bem-vindo(a) ao Laboratório de Autoria de Panapléia! À esquerda das postagens, estão meus textos divididos em categorias e temas. À direita, indicações de blogs e as mídias sociais. No rodapé, mimos felinos e os créditos do blog. Boa leitura!

NÁUFRAGA DE SI MESMA


Parou diante de um telefone público e deu-se conta de que não possuía um cartão. Retirou o fone preto do gancho e hesitou. Questionou-se: Quem aceita ligação a cobrar nos dias atuais? Poderia se identificar... Bobagem! Qualquer um desligaria com repugnância.

Às 18h as ruas comerciais estavam tranqüilas. Depois de aproveitar as praias, os turistas se recolhiam para jantar antes que as danceterias interioranas abrissem para entretê-los até o amanhecer. Podia-se aspirar das estreitas calçadas os deliciosos aromas que fugiam das movimentadas cozinhas dos restaurantes e das pousadas. Logo todos estariam diante dos apetitosos pratos da culinária cearense: baião de dois com piquí, macaxeira, batata doce cozida, galinha caipira... Embora não sentisse fome, sua boca salivou rapidamente e invejou os visitantes.

Nunca havia se hospedado num daqueles hotéis ou pousadas que tão bem conhecia por fora. Possuíam coloridas fachadas artesanais, jardins cheios de mesinhas com guarda-sóis e varandas bem ornamentadas. Em seus 24 anos nunca conheceu outras praias. Visitara apenas as cidades circunvizinhas depois que saíra do orfanato de Canoa Quebrada. Uma existência monótona, mesquinha e injusta – pensou.

Ao dobrar a esquina na Rua das Ondas, observou os barzinhos em funcionamento. As apresentações artísticas começavam mais cedo na sexta-feira. De repente, uma voz bastante conhecida fez seu coração encher-se de contentamento. Val, seu sempre-amor, nunca-marido. “O amor é o ridículo da vida” – lembrou. Aguçou a audição na tentativa de descobrir de onde vinha aquela música. Em segundos, chegou ao “Canto das Sereias”. Valfrido cantava e imitava (grosseiramente) o ídolo de Coralina:

- “Vida louca, vida / Vida breve / Já que eu não posso te levar / Quero que você me leve / Leve, leve, leve...”

A música havia terminado e o músico cabeludo recitou o mesmo poema que havia ouvido no filme Cazuza – o tempo não pára”:

- “O amor é o ridículo da vida... / A gente procura nele, uma pureza impossível... / Uma pureza que está sempre se pondo... indo embora / A vida veio e me levou com ela... / Sorte é se abandonar e aceitar essa vaga idéia de paraíso que nos persegue... / Bonita e breve... / Como borboletas que só vivem 24h... Morrer não dói...”

No meio das mesas quase vazias, uma garçonete com características indígenas e olhar vazio, refletia: “Morrer não dói...”

Da calçada pouco iluminada, Coralina sorriu com doçura e acenou insistentemente para a fiel amiga de infância. Nereida não a viu, nem poderia... Não estava no “Canto das Sereias”, mas numa praia deserta distante dali há 06 anos. 

- O mar tá em fúria. A maré tá muito alta, violenta - lembrava de ter insistido muito. - Desiste, beréu! Vamo deixar pra outro dia, traste.

A jovem desistiu de esperar a amiga voltar do seu devaneio. Seguiu andando por entre as barraquinhas de artesanato que acabavam de ser esvaziadas. Tantas oportunidades insubstituíveis, momentos desperdiçados – “o tempo não pára” – e um eterno remorso.

O noivado! Coração estilhaçado. Faltou-lhe ar. De olhos fechados sempre enxergamos melhor. O bilhete dele com versos do filme “Sociedade dos poetas mortos”:

“Fui à floresta porque queria
sugar a essência da vida
e viver profundamente.
Eliminar tudo o que não era vida!
E não, ao morrer,
descobrir que não vivi.”

Henry David Thoreau

Parou diante de uma modesta Capela de Nossa Senhora dos Navegantes. Hesitou, sempre tivera aversão a Igreja Católica. Sentou-se no último banco, não se sentia digna de se aproximar do altar. A construção era antiga com pouca claridade. Infiltrações no forro, rachaduras nas paredes, piso irregular pela ausência de alguns mosaicos, bancos empoeirados. Sobre a toalha encardida do altar, sempre-vivas num jarro plástico e uma borboleta preta com uma das asas machucada tentava alçar vôo. A ruína.

- A... Atchim! Atchim! Atchim!

Aquele ambiente era prejudicial à Coralina. Na tentativa de sair às pressas, esbarrou (estranho: nunca havia esbarrado depois do ritual) numa senhora de idade bastante avançada. Envergonhou-se e estendeu mãos frias para apoiá-la.

- Oxum aprecia o perfume das flores silvestres – sussurrou D. Ondina mostrando o pequeno ramalhete que trazia.

Ao ouvir o nome da entidade, Coralina lembrou de uma cozinheira de Água Fria que vendia vatapás e acarajés na calçada da escola municipal. Rudah lhe explicou que Oxum era a deusa da criatividade, das águas e da sensualidade para os iorubas africanos.

- À medida que as águas dançam, ela se adorna com braceletes e pingentes de pedra – explicou a baiana.

Como a moça permanecia em silêncio, a crédula senhora prosseguiu:

- Oxum oferece um bálsamo curativo a todos. Quando uma virgem quiser muito o amor de um rapaz... – sussurrou como se fosse confidenciar um importante segredo. – Numa sexta-feira de lua cheia, meia-noite, deve ficar nua no luar se agitando e murmurando como as ondas. Depois, segurar um papel que tenha a letra dele e mergulhar numa onda repetindo...

Coralina conteve-se: como revelar que morrera realizando aquele ritual?
| 2005 |

2 comentários:

  1. Queria escrever uma história acontecida no litoral cearense. O filme do Cazuza estava em cartaz e abri um espaço para ele no enredo. Quando comecei a escrever não sabia que a protagonista estava morta, isso foi se revelando aos poucos para mim.

    Por último, os nomes foram escolhidos onomasticamente. CORALINA vem do grego e significa "jovem donzela"; NEREIDE é uma derivação de Nereu, deus do mar na Mitologia greco-romana; ONDINA é de origem teotônica e significa "divindade das águas"; RUDAH vem do tupi e significa "deus do mar"; e VALFRIDO, do grego, "o amado ou protetor dos mortos".

    Apesar de não ser um conto extraordinário, conquistou meu amigo Márcio que fez uma capa para ele tendo Coralina como inspiração.

    VALEU, MÁRCIO!

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  2. Bem, o intuito foi trazer o título náufraga de si mesmo, através da junção de duas imagens: a da mão que parece estar se afogando, pedindo socorro e ao mesmo tempo a imagem do rosto da náufraga com seus cabelos escuros junto ao movimentos das águas. O objetivo era de causar certo impacto.

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