Se eu acreditasse em numerologia diria que dá azar completar 21 anos no dia 21 de janeiro. Pena que não acredito! Se eu acreditasse estaria vingada porque ano que vem o JEG (é a abreviatura do nome dele, não é minha culpa) vai completar 27 anos no dia 27 de agosto. Cruzes!
Na segunda-feira à tarde conversei com Helke e Jussara – descobri que ele já namorou a prima delas – e as duas falaram maravilhosamente bem da praga. Quase me convenceram a perdoá-lo por não ter ido à minha festa na chácara.
– Ele ainda ligou para me babar, o falso. Na realidade, o cretino acredita que o meu aniversário foi no domingo. Acontece que comemoramos antes por pura conveniência. Hoje, segunda-feira, foi, é, será, o “dia D”.
O momento crucial desta data seria ficar cara a cara com o indivíduo e dar uma prensa nele. Resolvi burlar minhas normas de conduta e invadir o território alheio: fui ao trabalho dele. O imbecil é o tesoureiro de uma escola de informática, onde passa os três expedientes. Decidi ir lá à noite por ser menos movimentado. Entrei na tesouraria vestida para matar – literalmente, fui toda de preto: pronta para pousar de viúva no velório dele. O canalha disfarçou muito bem a surpresa, sorrindo me convidou para sentar e explicou:
– Que visita agradável, benzinho! Pena que não vou poder ficar aqui com você – ele me olhava com aquele ar carente de ursinho de pelúcia que caiu do caminhão de mudança. – A diretora me convocou para uma prestação de contas – pela sua voz saudável, a gripe que o impediu de comparecer na véspera não fora tão forte assim.
– Não se incomode, querido. Eu espero – respondi com voz terna. – Todo o tempo do mundo, se for preciso.
– Fique a vontade, benzinho. Se quiser pode ligar a TV, tá?
De onde eu estava podia ver as costas do infame, a porta da diretoria estava aberta e ouvi o arranca rabo que rolava lá dentro. Comecei a torcer baixinho:
– Capa! Estrangula! Esfola! Esquarteja! Mata!
Tudo é divertido até certo ponto. Depois de uma hora ouvindo aquilo estava para sair correndo. Já tinha folheado todas as revistas e livros que encontrei a mão. A vontade de ir embora aumentava e comecei a sentir urticárias de tanto esperar. Contive-me. Não ia perder uma oportunidade destas. Resolvi me distrair empilhando a papelada espalhada sobre a mesa. Ele realmente deveria estar muito preocupado, visto que organização é um dos seus pontos fortes. Quando terminei de arrumar a bagunça, minha atenção se desviou para uma pequena agenda com capa de couro ao lado do telefone. Segurei pela fitinha bege que pendia para fora e abri – acreditando ser uma agenda telefônica da escola. Como um radar meus olhos imediatamente se detiveram num trecho da véspera: Domingo 18h – casa de Juliana. A EX dele?! Creio firmemente que nenhuma dádiva de oratória poderia me fazer explicar a fração de segundo em que meu cérebro decodificou o verdadeiro sentido daquela ingênua e estúpida anotação. O que é que aquele cafajeste foi fazer na casa da ex se ele estava tão doente que não pôde comparecer a minha festa?
– Vou arrancar seus lindos olhos – murmurei.
Passado o choque da informação, passei a folhear a bendita agenda de capa a capa. Que preciosidade! O asno anotou todas as saídas com a outra. Só faltou desenhar coração e escrever “querido diário”. Sabia que ele era organizado, mas não pensei que fosse robotizado. O cretino agenda tudo o que faz, só falta anotar a hora de ir ao banheiro. É o cúmulo da piração! Neste instante ouvi que eles já encerravam o balanço e me apressei em guardar a agenda. Sai da sala antes que ele tivesse tempo de entrar. Atravessei o pátio rapidamente e tranquei-me no banheiro. Precisava de tempo para decidir o que fazer. Estava confusa e não sabia como abordá-lo. Conhecendo o seu poder de persuasão, sei que ele daria um jeito de fazer eu me sentir culpada e ainda se passar por vítima. Não podia encurralá-lo na parede sem admitir que eu invadira a privacidade dele. Demorei a me recompor do choque. A minha consciência me indagava: é guerra ou perdão?
Enfim, sós com o miserável! Percebendo a minha tensão, o infame das costas ocas tentou umas brincadeiras para descontrair, cócegas, tudo. E eu fuzilando-o com os olhos, ainda sem saber que tática adotar. Guerra ou perdão?
– Você está esperando que eu comece, não é?
Balancei a cabeça afirmativamente sem nem encará-lo.
– Mas pelo menos olhe para mim, por favor – aquela “carinha de anjo” solicitou com o ar mais doce e puro do mundo.
Fingi que não ouvi e continuei encarando a parede. Guerra ou perdão?
– Não falo enquanto você não olhar para mim... Gatinha? – meu estômago revirou com o “gatinha” – Você quer saber por que eu não fui para seu aniversário? – ele acreditava realmente que aquele era o único motivo para minha birra.
– Depois das duas mensagens de ultimato, é o mínimo que eu mereço. Não acha, não?
– Ela... Você sabe de quem eu estou falando – senti minhas faces ruborizarem e me odiei por isso.
– Ela me procurou para conversamos e bem, nós resolvemos tentar novamente.
A situação era bem mais séria do que previa a minha vã perspicácia feminina. Esforcei-me para permanecer controlada, não podia me deixar abalar. Ouvi a sua história de trancoso na maior indiferença possível, embora a falsa crise tardia de consciência me provocava ânsia de vômito. O inútil só faltou dizer que a culpa era minha.
– Além do mais, eu sempre reclamei da sua frieza. Quer dizer – ele tentou emendar – não é que você seja fria. Por exemplo, agora, essa sua indiferença – era impressão minha ou o incréu estava desejoso por ter minhas mãos estrangulando-o? –Você é muito racional, muito cautelosa, e isso atrapalha bastante. Quando te conheci, uma atriz... Esperava que você fosse mais criativa e surpreendente. Entenda...
Esperei ele terminar o seu penoso discurso e ataquei – sem revelar minhas fontes, claro – pausadamente sem demonstrar me importar com o fato:
– Quer dizer que a pobrezinha foi atrás do ex, desconsolada, pedir para ter uma nova chance? Por que você resolveu me contar isso só agora se vocês estão juntos há três meses? – fiz uma pausa, mas não obtive resposta. – Afinal de contas, vocês passaram o Natal juntos, não foi? Até levou um buquê de rosas vermelhas para ela. Ou você achava que ia aprontar e eu não ia saber de nada? Conte uma que eu ainda não saiba!
Com essa investida, esperava que o pilantra caísse para trás. Meu ódio aumentou ao ouvi-lo responder com naturalidade:
– Não. Eu não faço nada escondido! Além do mais, todo mundo tem um informante – ele só ignorava que o meu era a agenda dele.
Não esperei por mais agrado. Percebi que precisava sair dali, antes que eu arrancasse os olhos dele e mais alguma coisa. Peguei minha bolsa e fui me dirigindo à porta.
– Espere! Não vá, por favor. Seu presente de aniversário está aqui.
Tive vontade de mandá-lo para onde Roberto Carlos mandou tudo, mas contive-me. Como eu consegui essa proeza? Tantos anos de teatro devem servir para alguma coisa, não? Não recebi o embrulho e dei as costas em silêncio.
– Você não vai nem olhar o que é?
Quase sorri, sabendo que era o livro “Onze Minutos” de Paulo Coelho – tinha visto até o preço na agenda abençoada. O cara de pau ainda me acompanhou até o portão. Tentou se despedir, dar beijinho (eco!) e me abraçar. Como me afastei, o sonso queixou:
– Tá dando choque agora? Tu nunca foi azeda.
– Eu sempre fui azeda – murmurei impaciente para sair dali.
– Nada disso. Antes você era uma carambola, hoje você está um limão – sorriu – Posso te deixar em casa?
– Deixa de ser falso – murmurei para não armar barraco na frente do porteiro.
– Quais dos meus carinhos foram falsos?
– Todos – será que o cachorro além de descarado é doido? Ou o safado só acreditaria que eu estaria ofendida se eu tivesse dado na cara lisa dele?
E lá fui eu, num frio desgraçado esperar ônibus embaixo de uma chuva fina. Ah, que ódio daquele infeliz – ou será que a infeliz era eu? Quando desci no terminal, pela Lei de Murphy a chuva tinha aumentado muito. Tive que andar mais seis quadras com um salto de sete centímetros (eu medi, viu) enfrentando as ruas alagadas e um frio cortante. Chegando em casa – lar, doce lar – meu irmão perguntou:
– Ué? A chuva molhou seu aniversário, pintinho molhado?
MEU ANIVERSÁRIO! Já tinha até esquecido...
– A pior de todas!
– Não, maninha! A pior, não... Podia ser bem pior! Já pensou se teu cabelo tivesse escovado?
Em outra situação teria caído na gargalhada, mas foi o suficiente para cair a ficha. Reagi! Realmente poderia ser bem pior! E viva o Jogo do Contente! Tomei um banho morno, vesti a blusa que ele me deu (com uma foto nossa na frente e atrás escrito: “Tô nem aí!”) e fui jantar uma sopa quentinha.
– Na Tela Quente tá passando uma comédia romântica chata daquelas que parece com você.
– Nesse frio eu aceito qualquer coisa quente. Qual o nome do filme?
– É... A agenda secreta do meu namorado.
– A, o quê?
2005
Sim, sim, sim, este conto é autobiográfico. Não adianta negar se muitos dos visitantes deste blog conhecem bem essa história em sua versão original. Claro que quando se trata de ficção acabamos tirando daqui e acrescentando dali. O filme foi o mesmo e estava passando na Globo quando cheguei em casa. Ao assistir fiquei indignada por não ter recebido nenhum centavo para ter minha história na telinha (risos).
ResponderExcluirGRATA PELA VISITA!
legal!quando vi o título do conto lembrei do filme e qual minha surpresa ao acabar de ler o dito cujo parabens gostei dei umas risadinhas não se ofenda se ri da sua "desgraça" já que é auto biografico1
ResponderExcluirparabéns muito bom!!!!!!!!!!!!!!!!!
ResponderExcluirGostei de participar de um dos seus contos, amiga. Ficou ótimo.
ResponderExcluirComo sempre,adoro tudo q vc escreve.E agora que sei do seu blog,vou ler tudinho. Parabens! Pra mim,vc sempre foi uma grande escritora.
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