PANAPLÉIA

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Bem-vindo(a) ao Laboratório de Autoria de Panapléia! À esquerda das postagens, estão meus textos divididos em categorias e temas. À direita, indicações de blogs e as mídias sociais. No rodapé, mimos felinos e os créditos do blog. Boa leitura!

CUIDE-SE, QUERIDA!

– Kalil! Ei, Kalil! – gritei para o motoqueiro parado no sinal vermelho.

Tenho certeza de que era Kalil – músico e meu analista nas aulas vagas – me ouviu e ignorou o chamado. Era a primeira vez que o via depois daquela manhã fatídica na URCA. Quando passamos no Vestibular, ele namorava minha colega de trabalho, uma rechonchuda professora de espanhol. Em pouco tempo nos tornamos amigos e cúmplices. Durante a primeira aula, sentei ao lado da janela para acompanhar o movimento do corredor na esperança de vê-lo chegar. Num instante em que parei a fim de fazer uma anotação da aula, ele segurou minha mão e beijou:

– Good morning – sussurrou matreiro.

– Descarado! – murmurei – Isso é hora de chegar?

– Psiu! Quero que defina “descarado” pra mim lá no murinho.

Assim chamávamos um muro baixinho que cercava a frente da universidade. Era o local preferido pelos casais de namorados e pelos cabuladores sóbrios. Por sua assídua freqüência ao local, Kalil permanecia no segundo semestre quando deveria estar comigo no terceiro. A segunda-feira era sagrada para atualizarmos as confidências. Por causa disso, eu já estava chegando ao limite das faltas em Fonologia.

– Prof. Aníbal Dantas não gostou quando pedi pra sair, mas precisava muito falar com você. Vamos pro Hemoce, darling? – perguntei agitada.

– Vamos fazer exame de sangue? Mas eu nem tô em jejum.

– Cretino nojento! – estava realmente indignada.

– Defina “cretino nojento”, please.

– Tá gaiato, né? – dei uma tapa firme em seu ombro.

O Hemoce ficava ao lado da universidade e possuía uma ostensiva escadaria de mármore branco na entrada principal. Quando o assunto era sério íamos até lá para nos protegermos dos curiosos de plantão.

– Não está na hora de você providenciar um telefone pra contato, hen, darling? – choraminguei indefesa.

– Só se for pra você me perturbar 25h por dia – respondeu arrogante.

Era verdade, mas eu tinha motivos para reclamar: morávamos em cidades diferentes e ele não tinha uma único telefone para contanto. Pior ainda, nunca ligava para mim.

– Parou a birra? O final de semana foi nitroglicerina pura! Jota estava na inauguração do shopping com a “fata morgana”.

– Aposto que a chiquitita promíscua, paquita erótica, ninfeta tarada, sei lá... Aposto que ela não chega aos seus pés por fora, muito menos por dentro – Kalil afagou meus cabelos com ternura.
– Uma pirralha depravada...

– Ela tem nome, Kalil – adverti pausadamente.

– Fala sério – ele me interrompeu sorrindo. – A carcará sanguinolenta já foi batizada?

– Shandelly, eco! Como ele pôde me trair com uma fedelha que tem nome de iogurte? Como, honey?

– Talvez ela seja muito boa... – percebendo minha indignação ele me abraçou com força. – Desculpe a brincadeira, Lili!


Kalil me puxou para mais perto dele e começou a cantar Jorge Vercilo: “ (...) Nono round / Tô remando contra a maré / (...) Nono round, tô na lona, / mas não me dei por vencido. / Tô legal, vou à forra! / Caio, mas volto em pé. / Bem ou mal, tô na estrada / atrás de um sonho perdido. / Por você vou à luta. / Sonhos, delírios, fé. / Quem ama nunca é normal, normal, normal, / Oh, baby, normal! / Lá no fundo ninguém é normal. / Aprendi na vida que toda ferida tem cura.” Ficamos alguns minutos em silêncio observando o movimento do trânsito já agitado àquela hora. De repente, ele encarnou o terapeuta:

– Como você está se sentindo, Liliane? – ele nunca me chamava assim.

– Com ódio, darling – respondi entre dentes.

– Defina “ódio”.

Duvidei que ele estivesse falando sério, mas seu rosto não trazia indícios de brincadeira. Kalil citou Freud, Yung e Lacan, mas não me convenceu a definir nada. Pedi em tom de súplica:

– Vamos assistir aula comigo no terceiro? Please!

– Não tem legenda? Traduza “please”.


Sorri e arrastei-o escadaria abaixo pela mão. Enlaçados pela cintura fizemos juntos o percurso de volta, enquanto conversávamos:

– Kalil, você é o melhor friend que uma girl pode ter, honey.

– Se continuar falando “portuglês”, eu não vou com você.

– Não, Kalil, por favor. Já parei!

– Que tal você criar vergonha nessa carinha de bebê e fazer um curso de inglês, hen? Não precisa aprender muito, só o suficiente para uma frase decente. Vai ficar gagá sem aprender a língua de Shakespere, poetisa?

Eu nem estava mais prestando atenção nas exortações do meu amigo:

– Sabe qual é o pior momento do amor, Kalil?

Fiz uma pausa, mas ele continuou em silêncio a espera da minha resposta.

– É quando você sabe que ele deve morrer, mas não tem forças para matá-lo.

– Já sei! Você leu isso na parede do banheiro feminino?

– Kalil! Seu... Idiota! – soltei sua cintura e empurrei-o.

– Calma, Lili! – ele gargalhava da minha revolta. – No banheiro masculino também aparece esses grandes filósofos.

– Tô bolando de rir, viu? – grunhi apertando seu braço.

– Ei, é brincadeira, menina! Lili, aprenda uma coisa: os amores vão e a gente fica.

– Ah, é? Você leu isso na parede do banheiro masculino, não foi?


Com Kalil do meu lado não consegui me concentrar na aula de Sociolingüística. Começamos a trocar torpedos literários através do meu bloco de anotações. Eu comecei e ficamos revezando:

“Não há a menor chance! Estamos presos por um destino singular: ninguém encontra seu par.” Charles Bukowski

“Grandes amores devem ser suportados com paciência.” Coco Chanel

“Todo mundo é capaz de suportar uma dor, exceto quem a sente.” Shakespeare

“O amor humilhado em sua nudez é maior do que o amor que procura o triunfo no disfarce.” Khalil Gibran (meu xará)

A última aula era da Profª. Socorro Martins: Literatura Comparada. Fizemos um círculo com as carteiras, pois haveria apresentação de trabalhos.

– Fala sério, honey! O que você faria se estivesse no meu lugar, darling? Help! Please, my friend!

Quando Kalil me olhou atravessado lembrei que tinha prometido parar de misturar português com inglês. Ele não disse nada, pegou meu bloco e foi sentar do outro lado da sala. Fiquei ansiosa para saber qual seria a sua resposta – certeira como sempre. Depois de alguns minutos recebi uma folhinha que li com sofreguidão:

“Cuidado, Lili!
Ele está sugando seu sangue, sua vida e lhe deixando anêmica. Tonta, por aí, largada. Jota suga o que você tem de mais belo e nutritivo, mas deixa um vazio no lugar. Não me parece justo! Compreendo o seu medo de abrir mão de tudo. Até porque parece que nunca mais você vai consegui gostar de outro cara. Ou pior que isso: será que vai aparecer alguém legal que lhe ame? O que fará com todo esse sentimento que tem para dar, se ele não quer receber? Guardá-lo, cuidar desse afeto precioso com esmero, como uma jóia merece ser tratada. Preste atenção para ver quem merece ter essa jóia ao invés de oferecê-la para alguém que não reconhece o valor que você tem. Acredito que se ele lhe conhecesse como eu, tudo seria diferente...
Pode ser que Jota não lhe valorize até mesmo porque você não exige isso dele. Sempre aguentando a barra resignada... Algo do tipo: ‘pelo menos eu tenho um pouco do carinho dele, é melhor do que nada.’ Se você não gostar de si mesma, não souber se respeitar, não acreditar que VOCÊ É ESPECIAL, que seu carinho vale ouro e que você merece muito mais do que ‘só um pouco’... Quem pode condenar esse cara por fazer o mesmo? Resumindo, Lili: apaixone-se por si mesma e conquiste adeptos!
Do seu fiel escudeiro: Kalil.”


O trivial: um bálsamo para as minhas feridas. Esqueci que estávamos no meio de um seminário sobre Dom Casmurro e exclamei com muitos decibéis:

– Kalil! Você não existe, my friend!

Todos silenciaram surpreendidos pela minha interrupção. O jovem músico calmamente aproximou-se e parou diante de mim:

– Onde, Liliane, que eu não existo? No seu mundo. – acrescentou com voz amarga.

Rapidamente se dirigiu à porta em passos largos.

– Kalil, espere! Darling!

– Take care, honey!

2005

2 comentários:

  1. - Adorei tanto este texto! Me identifiquei tanto!
    Principalmente por existir em mim um "Jota" e alguém que não se chama "Khalil", mas que existe.
    Adorei mesmo.

    Então, pode me descrever como Lua Estrela mesmo.
    E quando houver aula da senhorei, falarei.

    Beijão!

    ResponderExcluir
  2. A história do casal de amigos é uma lembrança fantasiosa de uma situação esdrúxula que vivi no Curso de Letras.
    KALIL vem do árabe e significa "amigo íntimo". LILIANE é derivado de Lilium do latim que significa "pureza e inocência".

    ResponderExcluir

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