PANAPLÉIA

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Bem-vindo(a) ao Laboratório de Autoria de Panapléia! À esquerda das postagens, estão meus textos divididos em categorias e temas. À direita, indicações de blogs e as mídias sociais. No rodapé, mimos felinos e os créditos do blog. Boa leitura!

O SÉTIMO DIA

“Um dia frio
Um bom lugar prá ler um livro
E o pensamento lá em você
Eu sem você não vivo.”
Djavan, Nem um dia


Quando Gláucia Rodrigues – 18 anos, uma das minhas melhores amigas – morreu em 24 de janeiro de 1998 com um aneurisma, passei meses para me desacostumar de telefonar para ela. Diversas vezes me dirigi ao telefone pensando “preciso ligar para...”. Era quando eu caía em mim, lembrava que Ternura não estava mais aqui e percebia que não tinha o número do telefone do além. Esse vazio faz pessoas buscarem no Espiritismo ou nas seitas um meio de comunicação com os mortos. Na tentativa, muitas vezes até desesperada, de ter notícias daquele que se foi.

Sábado de Carnaval de 2000, 5h da manhã, um ônibus de excursionistas da Comunidade Católica Shalom sofreu um acidente entre Limoeiro do Norte e Russas. Um carro com quatro pessoas entrou embaixo do ônibus; matando pai, mãe, filho e tio. O ônibus ficou dependurado na ponte, prestes a cair no Rio Jaguaribe, eu estava dentro. Acordada, vi tudo, fui uma das primeiras a descer no asfalto coberto de sangue e partes de corpos. Ficamos até 11h na estrada aguardando o Corpo de Bombeiros resgatar do ônibus os passageiros presos nas ferragens – todos vivos. Eu não quebrei uma unha... Foi difícil voltar a dormir depois desse acidente. É impossível ouvir histórias parecidas e não me sentir mal por ter sobrevivido – quase que culpada por ter sido escolhida para permanecer viva.

Em 1994 foi à morte do meu irmão do meio; em 2010, a morte do mais velho. Restou eu. Ficar para quê? Para ver aqueles que amamos partirem e percebermos que bens materiais duram mais do que os proprietários deles? Quem já perdeu um ente querido experimentou essa frustração. Quem já teve que abrir uma gaveta e arrumar os pertences que sobreviveram a quem você ama saboreou o amargor da impotência. A terrível sensação de ver um insignificante objeto pessoal continuar aqui, enquanto o dono já partiu. E não estou questionando “partiu para onde” porque não pretendo discorrer sobre questões religiosas.

Sexta-feira passada, 01 de julho de 2011, minha mãe entrou no meu quarto abruptamente – como sempre faz quando estou dormindo – e atravessou meu sono com uma história triste e complexa que foi assimilada em retalhos: televisão... acidente... família... açude... cinco mortos. Eram 8h da manhã e eu tinha ficado acordada até 4h cuidando de Marcelino (meu gato que morreu nessa funesta sexta-feira).  Meu cérebro não conectava as palavras umas as outras, embora mamãe me acorde assim com uma frequência aterradora desde minha infância – mesmo sabendo que fico com enxaqueca pós-susto.

– Você não conhece essa professora? Ela morou neste quarteirão na casa de D. Cícera.

– Não conheço os inquilinos dali. Não para ninguém naquela casa. Já morou gente demais lá.  

– Ela trabalhou na escola que Tallyta estuda. Parece que se aposentou.

– Como é o nome dela mesmo? – eu ia saindo do torpor narrado por Paulo Mendes Campos em “O despertar da montanha”.

– Teu pai ouviu na TV: Socorro Vanda. Valdemiro disse que não lembra dessa professora, mas lembra do marido dela.

Acordei. Professora morta! Caramba! Semanas antes Tallyta havia sonhado que eu morria e passava a notícia na TV. Premunições de família, eu também sou assim, sempre sonho próximo ao que será.

– Tallyta – gritei para minha sobrinha que também tinha ido dormir 4h cuidando do gato – como é o nome de Socorrão da tua escola?

– Ahn? Socorro Braga – respondeu já acordada pelos decibéis da minha mãe.

– Tem alguma Socorro Vanda lá?

– Só se for em outro turno, tia!

Levantei e fui cuidar da vida – enquanto tinha uma. Levar o gato para o veterinário foi a primeira providência do dia. A segunda, concluir a resolução da minha prova online MinC/FGV (prazo estourando). Depois saí para fazer o supermercado e resolver assuntos de rotina.

Por todos os lugares, as TVs ligadas nos noticiários do Ceará para alimentar a curiosidade mórbida dos juazeirenses. A cidade estava consternada, não se falava em outra coisa, mas eu preferia não ouvir. Cada referência me lembrava aquele ônibus virando, quando olhei para o rio e tive a certeza que morreríamos naquelas águas. Aqui as pessoas insistiam em falar nos corpos retirados do açude, no velório coletivo, na desolação dos amigos. Eu ficava surda, voltava no tempo 11 anos e revia a imagem daqueles quatro corpos mutilados. No meu lugar?

Hoje fui para o aniversário de Chrisininho (minha ex-aluna e grande amiga) e ouvi a narrativa da missa de 7º dia das vítimas. De lá fui para uma reunião sobre o Clube do Leitor no CCBNB e voltei para casa. Quando cheguei Tallyta me mostrou um bilhete da minha mãe escrito com letras garrafais:

“Izabela, a professora que morreu no acidente com a família foi Vânia. Eu vi a foto na lembrancinha da missa.”

Sabe quando você lê e tem certeza que entendeu errado? E você lê de novo para se convencer que não é aquilo? Finalmente, marcamos o casamento. E você lê de novo. Paulinha, nós vamos ser vizinhas! E você lê de novo. Como foi esse tratamento de varizes? E você lê de novo. Jucier joga todo sábado, eu fico sozinha, passa lá em casa. E você lê de novo. Eu vou te ensinar a fazer o banho de brilho no cabelo. E você lê de novo. O tratamento deu certo, eu estou grávida. E você lê de novo. Escolhi o nome dela: Juliana! E você lê de novo. Minha casa está pronta, nós vamos nos mudar. E você lê de novo. Eu passei no concurso para professora. E você lê de novo. Tive um menino, o nome dele é João Pedro. E você lê de novo, de novo, de novo e ainda se recusa a acreditar.

Liguei para Rose, a amiga em comum que nos apresentou, mas o celular não foi atendido. Acessei a internet e li aquilo que me neguei ver, ouvir, entender ou aceitar nos últimos sete dias:

Seis pessoas da mesma família estavam numa hilux preta quando o carro capotou, desceu a ribanceira, caiu dentro do açude do Sítio João Bento e ficou submerso, por volta das 16h desta quinta-feira (30/06/11). O veículo saído de Juazeiro do Norte com destino a Fortaleza sobrou em uma curva da Rodovia Pe. Cícero CE 375 que liga Quixelô a Solonópole –  local onde há muitas curvas e depressões. Os corpos foram resgatados pelo motorista que vinha atrás, José Batista (66 anos) e levados pelo Corpo de Bombeiros ao IML de Iguatu, onde chegaram por volta das 19h. As vítimas fatais foram: o marido José Jucier Fernandes (49 anos), a esposa Socorro Vania Gonçalves Fernandes (44 anos), a filha Juliana Gonçalves Fernandes (10 anos), o filho João Pedro Gonçalves Fernandes (06 anos) e Raimundo Soares de Oliveira (82 anos), tio de Jucier. Apenas o jovem Lucas Saimon Fernandes Honório (18 anos), sobrinho de Jucier, sobreviveu ileso ao acidente.

Uma das piores sensações é a da sobrevida, do bônus, de viver mais um pouquinho. A noção de permanecer aqui por algum motivo ignorado – e pelo que tudo indica continuará incógnito. Ter um olho no olho com a Morte e ouvir:

– Agora não! Aguenta o tranco aí! Espere a sua vez de ser chamada. Por enquanto, você... fica!
“Um dia triste
Toda fragilidade incide
E o pensamento lá em você
E tudo me divide.”
Djavan, Nem um dia

| 2011 |

9 comentários:

  1. Bom dia cara Paula,

    Meus sentimentos à família pela tragédia, à educação pela perda de uma companheira professora, a quem eu conhecia pessoalmente, à sociedade, pelos jovens que acreditamos seriam homens de bem. De fato uma perda terrível em uma estrada que visa encurtar distâncias entre a terra do Pe. Cícero e a Capital do Estado, pela qual tenho passado constantemente, inclusive na quinta-feira, pouco depois do acidente, e na mesma semana já via passado pelo local duas vezes, indo e vindo de Fortaleza, mesmo destino da família. Só queria, a luz da realidade esclarecer que o acidente foi fruto da imprudência e não por culpa da sinuosidade ou sinalização da estrada, no local há diversas placas avisando da curva perigosa, há redutores de velocidade e é num local onde é possível ver a curva com certa distância, a alta velocidade, talvez por não conhecer a estrada foi a causa do acidente, que sirva de lição a todos que por ali transitam e que tem tido no trânsito um local de competição ou demarcação de espaço, de propriedade, muitos acidentes semelhantes temos vistos em diversos locais por razões idênticas. Que esta tragédia sirva de lição a todos, que aprendamos que devemos dirigir com prudência e em defesa da vida e não contra ela.

    Abraço cheio de carinho.

    Jerciano Pinheiro Feijó

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  2. AI, FIQUEI TONTA AO LER TANTA COISA TRISTE EM UM CURTO PRAZO DE TEMPO. GRAÇAS A DEUS, NAO PERDI NENHUM ENTE QUERIDO, TRAGICAMENTE. NAOSEI QUAL SERIA MINHA REAÇAO. O QUE EU SEMPRE FALO É, QUERO MORRER ANTES DE TODOS MEUS FAMILIARES E AMIGOS(NAO QUE EU QUERIA MORRER LOGO), PARA NAO PROVAR O GOSTO AMARGO,ANGUSTIANTE DO DESESPERO!
    JOZY.

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  3. Que texto triste eu nao sabia que vc havia passado por isso. A vida tem dessas, a morte também.

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  4. Chocada! Eu sei o que é sobreviver a um acidente... no meu caso, todos sobreviveram, mas todas as sensações pré e pós-acidente são marcantes, mesmo sem fatalidade. Amiga, eu nem sabia do seu acidente, que você estava naquele ônibus do Shalom. Não se sabe o que determina que sua hora não chegou... as vezes a gente se pergunta o que ainda falta fazer pra ser "dispensado" dessa vida, mas o fato é que não somos donos dessa escolha, por mais que alguns a tomem pela força.

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  5. VANIA... UMA DAS MINHAS MELHORES AMIGAS... ELA FALOU A DORA,NA VESPERA DA VIAGEM,QUE ESTAVA VINDO A FORTAL E IA ME LIGAR... E POR IRONIA DO DESTINO EU ESTAVA EM JUAZEIRO, NO DIA SEGUINTE, ME DESPEDINDO...ELA ABRAÇOU MINHA IRMA,PARECIA QUE ESTAVA SE DESPEDINDO... DE MIM.POIS ERA EU A AMIGA QUE ELA PROCURAVA,TODAS AS VZS QUE IA A JUAZEIRO, NOS ENCONTRAVAMOS, TANTO NA SOLANGE, NA R LIMOEIRO, DIA DE DOMINGO, A ULTIMA VEZ NA CASA DA MAE DELA... ESTOU SENTINDO BASTANTE...

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  6. É uma incógnita mesmo, tanto a vida quanto a morte. Nosso pensar e compreensão se rende diante delas. Viver é ter certeza que se vai morrer um dia, mas não queremos que seja logo. Morrer , para quem acredita é ter a certeza que se vai viver bem melhor em outro lugar, mas não queremos que seja logo... É esse logo que nos surpreende e nos deixa atônitos. Esse logo que podia ser depois e esse depois que não queremos que cheguei logo. E quem fica para depois, creio eu, que em algum momento tem uma compreensão do porque o logo se fará depois. Viver é logo. Morrer é depois.
    Desejo Bençãos para sua vida querida. Amém.

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  7. minhas condolências a família, fiquei muito triste ao ver a irmã dele super inconformada, qual o nome dela??? gostaria de escrever para ela, palavras de solidariedade.


    tatiana freitas - iguatu ce

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  8. Own amiga.. que história mais triste.
    Eu não fico muito bem lendo essas coisas justamente por já ter sofrido um acidente meio sério e ter sobrevivido.
    O que eu guardo comigo desde aquele dia é que se deus(mesmo com a minha descrença) me salvou, é porque há algo, uma missão, sei lá.. aqui para mim.
    E é claro, como é que ele poderia te levar antes você ensinar tantas coisas boas à tantos(inclusive a mim!)?
    Você é muito muito especial, muito importante, e tem uma grande jornada. É por isso que ainda está aqui, eu tenho certeza.
    :)

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  9. Jerciano, bom ter tido esse retorno de sua parte que é uma pessoa idônea.
    Ane, Kelen, Jeania, Josy e Renê, obrigada pela força!
    Tatiana, infelizmente não tenho o contato da família do marido. Apenas da família da esposa. Pode ser?
    Agradeço a visita e o retorno de cada um!
    Abraços despenteados!

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