TROCA DE IDEIAS – CCBNB FORTALEZA
CICLO DO LIVRO: DA CRIAÇÃO À EDIÇÃO
Dia 14 de março de 2012, sábado, 17h às 19h
CONVIDADOS: Jorge Pieiro, Kelsen Bravos e Nilto Maciel.
MEDIAÇÃO e PRODUÇÃO: Paula Izabela
Se você é apaixonado pelo objeto LIVRO, se sonha um dia escrever e publicar, se teve obra editada ou simplesmente se interessa pela palavra escrita, aproveite para conhecer os mistérios da criação/edição e vislumbrar seus próprios caminhos literários. Debate editorial seguido pelo lançamento da coletânea “O outro dono do fim do mundo” do cearense Jorge Pieiro.
O
outro dono do fim do mundo
Jorge Pieiro
Malaquias escorre pelas noites. Pedras, ouro, cartas, desespero.
Carrega fantasmas sobre os burros. Há mais sombras e sons pelas trevas.
Acredita ter finado em tempos idos a mancha de uma sombra. Deixara para trás o
vácuo da notícia. Mas, desta vez, depara-se com o cão. E abandona pedras, ouro,
cartas, o desesperado, como fogem a galope os burros pelas quebradas e moitas e
monturos de pavor. Dez dias perdido no senso. Sem saber como, sente a mão
ressequida de Belinha.
Belinha? É você? Belinha, eu vi o diabo...
Se acalme, homem. Isso é tresvario.
Eu vi, Belinha. Medonho. Na noite, aquilo nas trevas do fim do
mundo. O diabo descamado. Duas brasas arregaladas nos olhos. Os chifres...
Aquilo sim era o demônio, Belinha...
Besteira, Malaquias. Você nunca fez nada para ter essa sorte...
***
Anda pela noite, Malaquias é o silêncio vagando. O chão seco
parece uma esponja absorvendo o medo qua agora clama no baticum do coração de
Malaquias. Há tesouro em suas mãos.
Dinheiros, tesouras, réstias de botijas de um velho Estácio
mandadas para outras vivendas. Cartaz, cruzes para os próximos mortos,
dentaduras e lampiões... No meio da noite, Malaquias não fala o que pensa. Pode
o diabo ouvir a sua voz...
***
A casa estala com o sol nas telhas. Belinha escurece a vista,
enquanto bebe a sopa fraca de carne de garça. Não vai nunca mais vai ser quenga
de novo. Adora Malaquias como seu rei ou seu Deus.
***
Outro dia. Ele chega, um andarilho vestido de cinzas. Não há muita
água para retirar o peso da noite e da terra dos ombros. Belinha se aproxima.
Os olhos rachados é o chão perto do riacho, reabilitam uma faísca no dentro
mais dentro da pupila. Malaquias resmunga os restos da noite.
Dessa vez não vi o diabo!
Você é um anjo, Malaquias...
Cismo que vai acontecer uma grande dor...
Não é maior dor eu viver sozinha?
Morrer é assim mesmo, a gente teve de nascer.
Malaquias, tenho tanto medo... Essa fome que não acaba nunca...
Vai mudar, mulher, vai mudar. Nem que seja no pior!
Não diga isso, homem.
É assim a nossa sorte, não é? Assim que vai acontecer.
Amém.
Resmunga seu amor por Belinha. Ela consente. Acende a lamparina, a
fumaça tisna a parede já marcada. O amor bruxuleia.
***
Pela madrugada, Malaquias novamente se espanta.
A volta pelo mundo dos segredos atinge em cheio o pensamento de
Malaquias. A dúvida, o sacrifício. Sozinho por esse mundão, deslizando feito
uma cobra venenosa na escuridão, carregado de recados, sonhos e encomendas,
atrelado aos seus dois burros, pesados e atravessados pelo tempo. Também vale a
sina para Belinha no meio da secura, solitária, garça desgarrada do bando, e
por isso mesmo exposta às mãos do destino. Quando há solidão, Belinha enche o
silêncio de bichos, olha a resistência das nuvens em se formar, arde ao sol, lagartixa
sem nenhuma acrobacia. Quantos dias, meses, exausta-se no ermo daquele
caramujo? Quando Malaquias chega, mais que apenas o Malaquias, pele-terra
grudada no corpo, faz um trejeito, um esgar, recomendado como um sorriso de
felicidade. É a vez da terra. E Malaquias aduba aquela terra árida, planta a
semente meio morta, fraca indesejada pela má-sorte. E Belinha enruga mais ainda
os olhos, esquecida de todas as agruras. Malaquias é o seu homem, seu anjo, seu
diabo de amar.
***
A noite passada com Malaquias, Belinha tivera um pressentimento
bom. Esquecera a fome, o medo, a solidão. Malaquias tinha um brilho diferente
na testa, os olhos. Pouco sabia dos segredos, mas sentira o choque da vida, a
grande explosão dentro do útero. Sim, Malaquias seria pai pela primeira vez e,
com ela, viveria um instante de alegria. No retorno, abrira-se para o homem.
Malaquias, estou cheia.
Fala sério, Belinha?
Deus vai me dar outro anjo...
...
Ele escuta, coça a cabeça. Abraça Belinha. E deixa um cisco cair
dentro do olho, ferindo o espelho da alma.
***
O menino cresce no seco. Uma cara de cachorro. Grunhe, somente. O
gesto engraçado de um duende no meio da caatinga. Ama os urubus. Cria um, Drã,
assim acostumou a ave dos cadáveres a vir até ele para comer carne de calango morto
na antevéspera com um caco de vidro. Marroquin tem nas caudas vivas a maior
diversão. Belinha tem pena de Marroquin. Enche-o de mimos rudes. Malaquias
sofre. Não se encara com o menino. Na aparência dele, parece que vê o cão de
novo. Desgosta quase por isso de Belinha. Ela sente a trave no coração,
esticando a dor. Mas não fala nada. Desde que Marroquin nasceu, Belinha não
fala mais nada.
***
Malaquias quase não vai mais em casa. Belinha e Marroquin se
abandonam ao silêncio do sol. Esta noite, Malaquias sente o peito apertado.
Noite de gelo na alma. A coruja rasga o pano do céu a gritos. Folhas secas dão
motivos de espanto. A noite está diferente. Malaquias anda como se estivesse de
olhos vendados. Os passos afundados vão macios, medrosos, em versão de calúnia
e remorso. Neste instante pensa em Belinha, somente em Belinha. Reza por ela.
Belinha sonha em casa, beliscada pela oração de Malaquias. Ele não se lembra,
nem quer lembrar de Marroquin. Belinha acorda chorando um córrego de areia, que
seus olhos não tem mais aquele mar. Marroquin se remexe no chão onde dorme,
pois é ali que prefere trocar sementes com a terra. A noite é comprida nesta
noite. Malaquias encosta-se para descansar. A respiração atropelando o
pensamento. Belinha sua. A fome comprime seus nervos. Pressente. Marroquin
grunhe. Parece sonhar. Parece ensaiar um riso pelo canto da boca, mais próximo
a um esgar. Se se pode compreender, há felicidade dentro daquela cabeça
desafinada, naquele instante. Agora, nesta hora exata em que uma luz queima a
escuridão no meio do mato e parte para cima de Malaquias. Ele sente a urina
inundar a perna. As pernas apodrecem, enquanto um gosto de poeira passeia pela
língua. Malaquias fecha os olhos. Mais a claridade aumenta. Belinha, de
tristeza e dor desfalece os sentidos. Marroquin grunhe de felicidade. É mesmo
uma aura de felicidade pairando no instinto do louco. No meio desta noite,
Malaquias se defronta pela segunda vez com o demônio. O bicho com a cara de
Marroquin, um pesadelo, uma sombra, mas não é Marroquin é o diabo medonho
beijando a face de Malaquias. O pavor é uma grande dor. Ele vai se encontrar
com Belinha no lugar dos desmaios. Marroquin se aquieta. A coruja rasga o céu
de uma vez por todas. A noite chega ao fim. Chega a mordida da manhã com um
gosto de salitre e dois faróis acesos nos olhos esbugalhados de Malaquias.
Recupera a última força e se impõe à velocidade dos desesperados.
***
Malaquias? Malaquias? O que aconteceu?
Belinha espreita esse grito quando vê seu homem se aproximando, um
trapo, o fim do homem. Malaquias vem acompanhado de olheiras acesas, as roupas
rasgadas. As mãos ainda tremem. Belinha agarra-se com ele. Carrega-o para
dentro de casa. Por aquela boca não sai nada.
Malaquias, Malaquias, o que aconteceu?
***
Marroquin acompanha a confusão à distância. Aperta seu Drã, como
se soubesse da hora. Sai correndo sem olhar para trás. Atravessa o leito seco
da lagoa, mira a serra por detrás, pisa na terra vermelha a pés largos e
enfrenta o vento com uma coragem de Deus. Há pouco, encontra os olhos na
cidade.
***
Malaquias maquina, Belinha desacredita. Ele chuta a porta, o barro
do pote, o sol na terra, o piso do vento desacreditado. Enferruja o silêncio.
Belinha se desativa no canto do chão. Nunca vira Malaquias tão diabo. Os olhos
encarnados, os pêlos arredios, as mãos crispadas, a secura na garganta, o
defronte do delito. Em direção à Belinha, dá-se sem se aperceber ao benzido e
se apaga de senso. Começa a chutar Belinha, amaldiçoando o sol, o vento, o céu,
Deus. Culpa Marroquin perdido lua-sol afora. E chuta Belinha, chuta o trapo, o
molambo de carne seca, a dor engolida de Belinha, até que de nada mais só é dor
o pé, a perna, o corpo, a cabeça, o desespero...
| 2012 |
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